sábado, 25 de junho de 2022

Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral da República Gabinete do Ministério Público Junto do Tribunal Constitucional Rua de O Século 111, 1200-434 Lisboa Funchal, 20 de Junho de 2022
(imagem obtida no google) QUEIXA CONTRA 0 PARTIDO SOCIALISTA POR INCUMPRIMENTO DA LEI E DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA: PERDA DO DIREITO DE VOTO, POR RAZÕES FINANCEIRAS, NAS ELEILÇÕES INTERNAS EXCELÊNCIA 1. A formalização desta queixa ao Ministério Público junto do Tribunal Constitucional tem como finalidade última suscitar junto deste Órgão de Soberania a verificação da eventual inconstitucionalidade da perda do direito de voto imposta aos militantes do Partido Socialista, por razões de natureza financeira, tendo, obviamente, como enquadramento a Lei dos Partidos Políticos e a Lei Fundamental e, por essa via, aplicar um acórdão favorável, a esta pretensão do mesmo Tribunal que, assim sendo, se torna extensível a todos os partidos políticos. 2. O argumento que se levanta de que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre os estatutos dos partidos suscita duas questões: a de que a própria aprovação estatutária não impede o pedido de revisão da posição tomada, alteradas as circunstâncias, concretas, como se verificou em toma de posição paradigmática e inaudita recente, posto que noutro âmbito, de Sua Excelência a Senhora ProcuradoraGeral da República perante o Tribunal Constitucional, salvaguardados o estatuto de Sua Excelência e o de um cidadão comum, ficando o paralelo situado apenas na solicitação. E as circunstâncias alteraram-se, como se verá. 3. A outra questão postula outros considerandos, a começar pelo percurso que se inicia desde o 25 de Abril, na legalização e aprovação dos estatutos dos partidos e associações, e que convém recordar. 4. Os partidos políticos nascentes no alvor do atual regime democrático e constitucional foram legalizados, após essa data, em 1974 e 1975, nomeadamente aqueles que haviam de concorrer às primeiras eleições, de natureza constituinte. 5. A sua legalização fez-se junto do sistema judicial, ainda antes da existência do Conselho da Revolução, junto do qual veio a funcionar a então Comissão Constitucional. 6. Assim sendo, os estatutos dos partidos então nascentes para a vida democrática, viram os seus estatutos aprovados como qualquer associação de direito privado – são os partidos de direito privado ou de direito público? - destrinça que, no funcionamento destes, jamais foi dilucidada, dissecada, muito menos clarificada. 7. Aliás, esta é uma questão que se coloca também em outros países, o da natureza e estatuto dos partidos políticos poderem conformar a sua organização interna como um pacto de solidariedade entre os seus militantes, que se filiam livremente, sem interferência inconveniente do poder político, como naturalmente é próprio das democracias parlamentares ou liberais, segundo certa doutrina. Este é um ponto essencial, visto que o próprio pagamento de quota, ponto que dá origem à questão essencial desta queixa, a perda do direito de voto interno nos partidos, era uma condição de coesão e democracia internas e se transformou no oposto: motivo de fragmentação da solidariedade e da democracia interna, alterando-se, pois o motivo da sua criação. 8. O mesmo não se dira da intervenção conveniente do poder judicial, em determinadas circunstâncias, como é legal e constitucionalmente garantido. 9. A aprovação dos estatutos de novos partidos, ao longo do processo democrático, seguiu a jurisprudência vigente. 10.Ou seja: nunca foi solicitada a verificação ad hoc, (no sentido literal e destituído do caráter efémero), da constitucionalidade da norma estatutária, que, nos partidos políticos, retira o direito de voto, que, num partido, é um direito político, aos militantes partidários por questões de natureza financeira (o pagamento de quota), que pode, em determinados casos, derivar de questões de natureza social. 11.Já não se especula se a condição social e financeira derivou de desvantagem por questões de natureza étnica ou de orientação sexual ou por questões de género, mesmo que os estudos disponíveis deem indicadores claros sobre o assunto, no acesso a uma profissão bem remunerada e colocada nos patamares mais elevadas da escala social, razões que a lei comum e a Constituição não permitem. E não se especula porque então a violação da Lei e da Constituição atingiria graus elevados de ilegitimidade. 12.Uma vez mais se clarifica que não é a obrigatoriedade do seu pagamento (de quota partidária) que se questiona, mas a relação de causalidade entre o direito de voto, que num partido político só pode ser de natureza política, e a situação financeira de um militante, o que não se exige a um cidadão comum em eleições dos órgãos de poder político, porque é vedado pela Constituição. 13.De facto, ninguém tem de ter os impostos em dia para votar em qualquer eleição dos diferentes órgãos de poder, desde o poder local ao Presidente da República. A sanção, a haver, é outra e de outro âmbito. O mesmo se pede, por questões de igualdade, para os cidadãos voluntária e civicamente empenhados na vida política, através dos partidos, e no reforço da democracia. Denodo e não penalização é o que deve ser reconhecido 14.A Lei dos Partidos Políticos, Artigo 7º., estabelece que “Os partidos políticos são integrados por cidadãos titulares de direitos políticos”, que “concorrem para a livre formação e o pluralismo de expressão da vontade popular e para a organização do poder político […]”. 15.Esta afirmação citada da lei não pode, de forma alguma, ser compatível com o cerceamento do direito de voto no interior de um partido, por questões de natureza financeira, na escolha, nomeadamente, daqueles que vão integrar órgãos de poder e põe em causa os direitos liberdades e garantias de participação política dos cidadãos militantes de partidos. 16.O facto de a inscrição num partido político ser livre, a partir do momento em que, livremente se inscreveu, essa liberdade não pode vir a ser condicionada por razões que a própria Constituição impede, porque tal restrição obsta a que milhares de cidadãos, os militantes inscritos que perdem o direito de voto nas eleições partidárias por questões financeiras, “concorr[a]m para a livre formação e o pluralismo de expressão da vontade popular e para a organização do poder político […]”. 17.A violação desse direito e o dever - adquirido por inerência - de cumprir essa obrigação cívica de concorrer para a livre formação de partidos e para o pluralismo, finalidade dos partidos políticos, a “expressão da vontade popular e para a organização do poder político […]” é de tal ordem flagrante que um militante que se veja cerceado do direito e do dever correspondente por razões alheias à sua vontade, quando o for, poderá mesmo questionar-se se este não é um daqueles casos em que o apelo ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é também um imperativo ético. Realça-se aqui a natureza da finalidade ou objetivo legal e constitucional dos partidos políticos. 18.Até porque, e aqui o dever de olhar para a vida interna dos partidos não é incompatível com o respeito pela sua autonomia e solidariedade interna: que solidariedade interna e autonomia podem ter estas organizações se a comunidade nacional for confrontada com notícias sobre a violação das regras sob as quais se deve exercer a autonomia destes organismos pela ação de alguns que projetam a conquista à outrance do poder e o conseguem por nem todos poderem exercer o direito de voto por questões financeiras, que nada têm a ver com os direitos, liberdades e garantias de natureza política? 19.As circunstâncias, desse ponto de vista, face à finalidade do que estava implícito na fundação dos partidos em 1974, o seu papel na democracia, a sua coesão interna necessária, o facto de não haver ainda financiamento público dos partidos, não fazia prever o uso abusivo do (não) pagamento de quotas para a conquista do poder interno nos partidos, e, através disso, do poder político no país. 20.O papel dos partidos não se alterou, o que se alterou foi, por vezes, a subversão das regras para fins que não aqueles que eram previstos e isso com base nessa ausência de militantes, milhares de militantes, em eleições internas, não por vontade dos próprios, mas por questões financeiras. 21.Os partidos não se mostram, apesar disso, disponíveis para uma alteração legislativa que desvincule o direito de voto da questão financeira. O prestígio democrática dos partidos está em causa. E logo do regime democrático. Havendo, claramente, um desvio das regras escritas e do seu espírito com fins de conquista de poder interno por causa dessa vinculação do direito ao voto à questão financeira, está igualmente alterada a circunstância em que os estatutos originais e subsequentes foram aprovados. Pode mesmo afirmar-se que o pedido ao Tribunal Constitucional de verificação da constitucionalidade deste ponto específico, em se havendo alterado as circunstâncias, é devolver-lhe de novo a palavra para agir em defesa da Constituição da República e da Democracia. A Constituição nunca foi interpretada em abstrato, mas em concreto, tendo em conta as circunstâncias daquilo que se passa no País, como aconteceu já em momentos de crise. 22.A fundação da 5ª República e a queda sucessiva da terceira e quarta repúblicas que lhe antecederam, em França, bem como da primeira república em Portugal é atribuída, por alguns historiadores, ao desrespeito da autonomia e coesão interna dos partidos por alguns que, internamente, não respeitaram as regras claras que permitiam o seu regular funcionamento. E, externamente, ninguém agiu. Não desejo que isso aconteça de novo no nosso País e que nunca aconteça no meu partido, e acho que é a altura de agir, como militante e cidadão comum, o direito de constituir ou participar em associações e partidos políticos e de, através deles, concorrer democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder político. 23.É certo que “O Tribunal Constitucional, em jurisprudência constante e reiterada, tem vindo a definir e a densificar os critérios que devem orientar a sua intervenção em sede de controlo da legalidade interna dos partidos políticos, considerando que tal intervenção se rege por princípios de intervenção mínima ou de controlo mitigado.” Nada aqui se contesta, obviamente, e tudo aquiesço, como dever de cidadão. Todavia, estes “princípios de intervenção mínima ou de controlo mitigado.” (Acórdão 422/2022, 7 de Junho de 2022) têm de corresponder, por parte destes, os partidos, ao cumprimento máximo ou observância absoluta da finalidade desses organismos de natureza política, finalidade que lhes é imposta pela lei e pela Constituição, de cuja fidelidade absoluta o Tribunal Constitucional é o guardião supremo. 24. Assim, é agindo com base em fazer cumprir o que ambas, a Constituição e a Lei conferem hermeneuticamente no seu texto que o douto Tribunal poderá intervir fazendo respeitar a finalidade – para usar a doutrina de Jean-Pierre Camby sobre esta matéria - para que os partidos foram criados. 25. Ao fazê-lo, agir em nome da Constituição e da Lei, o Tribunal reforça a autonomia e a solidariedade interna, que só pode ser compatível com a democracia, jamais com a autocracia, o desmando e a arbitrariedade internos. A democracia liberal será um logro no país se ela não vigorar no interior dos partidos. Face ao exposto, reitero a Vossa Excelência a queixa contra o Partido Socialista por violação da Lei dos Partidos Políticos, quanto aos seus artigos 7º e 19º, número 2, e do Artigo 13º, número 2, da Constituição da República Portuguesa, nos seus estatutos, através do número 2 do artigo 8º, ao anular o direito de voto previsto na alínea b) do número 1 do mesmo artigo dos seus Estatutos Nacionais por razões de natureza financeira. Com os mais respeitosos cumprimentos, Miguel Luís da Fonseca ____________________________________________________________________ Cartão de Cidadão 4913927 Militante do Partido Socialista